quarta-feira, 16 de março de 2011

apagar-me

apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme

leminski

terça-feira, 15 de março de 2011

Carta


Amor,


Não consigo dormir. Deve ser a noite fria. Por aqui as novidades vem só de vez em quando, sem pressa. A cidade é linda e você também. Mas eu gostaria de ver de novo a primavera nos seus olhos, porque há muito vim e há muito também quero voltar. Espero que agosto acabe logo, porque a vida é a mesma e eu não mais. Vou lhe mostrar que com uma bicicleta e um fim de tarde dá pra ser feliz e ir atrás da lua. Deixa o vento sussurrar aqui nessa janela, porque é quase como um sussurro seu. É quase uma sinfonia no silêncio que me segura. Não consigo dormir. Acho que é você.

artur schütte

quarta-feira, 2 de março de 2011

Do Me a Favour


she walked away, well her shoes were untied,

and the eyes were all red

you could see that we’ve cried

and I watched

and I waited

‘till she was inside

forcing a smile and

waving goodbye



arctic monkeys

terça-feira, 1 de março de 2011

O Natimorto Pt. II

O chuveiro
silencia,
e em meu silêncio
procuro
vislumbrar
o que se segue.
Ouço um som abafado,
imagino
a toalha sendo puxada
do aparador
e abraçando
as formas
da Voz.
Então, ela entra no quarto
sorrindo,
vestindo
apenas
a toalha
com o brasão
do hotel.

A Voz - Esqueci de separar minha roupa.

Procuro
em vão
desviar
o olhar:
Ela percebe
minha luta
e solta a toalha
para poder
se secar
enquanto
me umedece
de suor
e desejo.
Percebendo
minha derrota
seu olhar
me desafia.
Bruscamente
me levanto
e procuro
o cigarro.

A Voz - Acende um pra mim também?
O Agente - Claro.

Ela vem
nua
em minha direção
mas age
como se estivesse
vestida.
Toma o cigarro
da minha boca
e fuma
sorrindo.

O Agente - Uma vez eu estava na praia...

Trago.

O Agente - E vi um garoto construindo um castelo de areia. Ele era muito detalhista e avançava cuidadosamente em sua construção. Cuidava de cada detalhe pormenores, as minúsculas janelinhas, o recorte da muralha, a porta e até sua ponte suspensa. O menino dedicou um bom tempo, pacientemente, a seu projeto.

Trago.

O Agente - Uma vez concluído o castelo, o garoto tomou distância e contemplou a obra. Volteou sua réplica sorrindo de contentamento, depois começou a golpeá-la com os pés até desfazê-la por completo.

A Voz - Mais uma bronca em parábola?
O Agente - Como?
A Voz - Essa história me lembrou a do cachorro.
O Agente - Não, eu só queria me distanciar.
A Voz - Se distanciar? De quê?
O Agente - De sua nudez.
A Voz - Pronto, já estou vestida.
O Agente - Eu recorri à primeira história que me veio à mente por causa da minha determinação... você sabe, quanto a minha opção... assexual.
A Voz - Minha nudez te desconcertou?
O Agente - É, eu não esperava essa naturalidade.
A Voz - Te excitei?
O Agente - Prefiro não falar sobre isso.
A Voz - Por quê?
O Agente - Porque isso me excitaria ainda mais.
A Voz - Então, te excitei?
O Agente - Era isso que você queria?
A Voz - Quem sabe?

Lourenço Mutarelli

O Natimorto


"O Agente – Um dos meus tios, que por sinal era padeiro, para nos proteger e nos manter afastados do poço tentava nos assustar, dizendo que ali dentro, ali no fundo, havia um monstro.

O Agente – E nós, como éramos crianças, acreditávamos.

O Agente – Um dia meu primo, que hoje é advogado, por descuido acabou caindo no fundo do poço.

A Voz – Meu Deus! E se machucou muito?

O Agente – Fisicamente, não.

O Agente – Mas, como estava apavorado e levou algum tempo para que o resgatassem, ele ficou muito desesperado.

O Agente – Por sorte e por azar, ainda havia um pouco de água no fundo do poço.

O Agente – Por sorte, isso amorteceu sua queda.

O Agente – Mas, ao mesmo tempo, com a luz que entrava no buraco e incidia na água, ele acabou vendo o seu próprio reflexo.

O Agente – Por fim, quando o içaram, eu corri e perguntei a ele: 'E então, como é o monstro?'.

O Agente – E a resposta foi: 'Ele é como nós. Todos somos monstros'."

Loureço Mutarelli, O Natimorto.